Autor: Demétrio Cherobini
Revisão do texto: Prof. Dr. Holgonsi Soares
Gonçalves Siqueira
* texto escrito e apresentado na
DCG: Novas Tecnologias e Cibercultura - Julho/2007
É relativamente fácil constatar que a World Wide
Web afeta, hoje, a vida de todos. Um exemplo banal: nos últimos dias de 1999,
as pessoas em todo o mundo (ocidental) quase entraram em paranóia em razão de
uma “não-entidade” denominada "bug do milênio", que poderia ter
desencadeado efeitos catastróficos, tanto em nível de economia internacional,
quanto em relação à vida cotidiana em suas facetas mais comezinhas – alterar o
controle do suprimento de água, por exemplo. Nada aconteceu, de fato, naquela
ocasião. Mas esse “bug do milênio” serviu para confrontar-nos com o fato de que
nossa vida "real" é regulada em larga escala pela ordem virtual de
conhecimento objetivado a que nós chamamos pelo nome familiar de Internet, e
para mostrar-nos, por conseguinte, como esta rede adquiriu, nos últimos anos,
uma importância social e política muito grande.
Mais difícil que reconhecer isso
é encontrar um posicionamento crítico sobre o assunto que evite, ou mesmo
transcenda, as soluções extremas – e, por que não dizer?, fáceis - dos
tecnófilos e tecnófobos de plantão. Nesse sentido, aqueles que por empatia se
colocam ao lado dos que buscam a emancipação das relações sociais alienadas e
alienantes de nossa sociedade atual podem encontrar uma proposta coerente nas
obras do sociólogo, filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek.
O tema
das Novas
Tecnologias de Informação e Comunicação, em geral, não é central na obra de Zizek. Muito
menos, o tema específico da Internet. Em verdade, todas essas questões são
tratadas de forma marginal em seus textos, que versam sobre psicanálise,
filosofia, sociedade, política e outros assuntos. Há que se compreender,
portanto, algo dessas teorizações, antes de se apreender como o pensador
esloveno concebe as possibilidades emancipatórias abertas pelo advento da
Internet.
A teoria
social e política de Zizek está imbuída do objetivo de “reencontrar este
momento único no qual um pensamento ainda se transpõe em uma organização
coletiva, mas ainda não se fixa em uma instituição” (Zizek, apud Safatle, 2003,
181). Esse momento em que o pensamento e a atividade coletiva se encontram é o
da ação política soberana. Esta, em verdade, é concebida como o ato que
instaura a partir de si mesmo sua própria legalidade ao “suspender a Lei”,
abrindo assim a possibilidade de emancipação. É imprescindível para a teoria de
Zizek, nesse contexto, a categoria filosófica da negatividade.
Baseado
fundamentalmente em Lacan e Hegel, Zizek desenvolve uma teoria do sujeito
repleta de conseqüência políticas e apta a guiar práxis sociais de cunho
emancipador. Segundo Lacan, no inconsciente não há nenhuma positividade
primeira. Ele não é “uma caixa de Pandora de onde sairiam pulsões
não-socializadas e conteúdos recalcados. Ele é, antes, aquilo que, no sujeito,
se define por resistir continuamente aos processos de auto-reflexão. Ele [o
inconsciente] é lugar do que só pode aparecer como irredutivelmente negativo
[grifo nosso] no sujeito. De onde se segue a importância do tema do
descentramento do sujeito do inconsciente (e não seu abandono). Descentramento
que indica a posição de não-identidade que um conceito não substancial de
sujeito sempre sustentará diante dos espaços de representação, de
auto-apreensão reflexiva e de identificação social” (cf. Safatle, 2003, 182).
O que
significa isto, exatamente? Para a psicanálise clássica, a cura da neurose se
realizava quando os conteúdos do inconsciente eram trazidos ao campo da consciência,
para aí, então, serem superados. Contudo, se o inconsciente não é uma caixa
repleta de conteúdos, mas a própria resistência em se tornar consciente, ou
seja, a própria negatividade, é esta negatividade mesma, “vazia de conteúdo”,
que tem de ser transposta “para fora”, que tem de ser atualizada. Lacan,
portanto, realiza uma articulação entre sujeito e negatividade que são caras a
Zizek em seu projeto de fundamentação de um projeto de emancipação do sujeito.
O que o filósofo esloveno faz é tirar uma conclusão política dessa teoria
lacaniana do sujeito. Em outras palavras, Zizek politiza o sujeito lacaniano.
Nas suas palavras: “O sujeito é inerentemente político no sentido que
‘sujeito’, para mim, denota uma partícula de liberdade, já que ele não fundamenta
suas raízes em uma substância firme qualquer, mas que se encontra em uma
situação aberta” (Zizek, apud Safatle, 2003, 183).
Para
Zizek, “a experiência da negatividade do sujeito indica, entre outras coisas,
como o desejo não se satisfaz na assunção de identidades ligadas a
particularismos sexuais. O sujeito é aquilo que nunca é totalmente idêntico a
seus papéis e identificações sociais [grifo nosso], já que seu desejo insiste
enquanto expressão da inadequação radical entre o sexual e as representações do
gozo” (Safatle, 2203, 183). Ser sujeito, portanto, não é assumir uma identidade
eventualmente recalcada por pressões sociais e/ou psicológicas. É, ao
contrário, o próprio ato de negação de uma identidade que nos é imposta. Daí, a
renúncia de Zizek em compactuar com qualquer política de identidade, pois
estas, no seu entender, acabam fazendo o jogo da ideologia e, por conseguinte,
do Capital. Pois o Capital acomoda-se muito bem às políticas de identidade e à
multiplicidade de identidades. É por isso que, segundo Zizek, toda política da
identidade faz o jogo do Capital.
Explicamos
melhor: as teorias críticas clássicas preconizavam a crítica da ideologia como
condição para a emancipação. O sujeito atua no capitalismo, se aliena, e forma
uma determinada representação sobre si – representação que em si mesma é falsa
– e que impede que ele se dê conta daquilo que ele “realmente é”, de sua
“identidade”. Por exemplo: o trabalhador alienado, explorado, oprimido. Havia
uma identidade subterrânea soterrada que precisava ser resgatada, a fim de se
promover o ato transformador.
Zizek não
quer resgatar nenhuma identidade. Ao contrário, ele desconfia da assunção de
identidades. O que ele visa é, justamente, negar as identidades que nos são
atribuídas pelo Capital. Assim, a única universalização pretendida não é a
universalização da identidade, mas a universalização da negação. É por isso que
“a negação pode nos abrir uma via para a fundação de um universal
não-substancial caro a um pensamento crítico de esquerda que não queira
entregar o discurso do universalismo aos arautos do capitalismo global. Contra
uma política das identidades, uma política da universalidade da inadequação”
(cf. Safatle, 2003, 184). O ato político por excelência é justamente a
suspensão desse universal simbólico que nos é dado pelo Capital, e que se
expressa fundamentalmente no ordenamento jurídico em vigência. É por esse
motivo que Zizek afirma que “a verdadeira escolha livre é aquela na qual eu não
escolho apenas entre duas ou mais opções no interior de um conjunto prévio de
coordenadas, mas escolho mudar o próprio conjunto de coordenadas” (Zizek, apud
Safatle, idem, 185). A verdadeira escolha livre, o ato político par excellence,
é a suspensão de uma determinada ordem jurídica.
Mas e
onde a Internet entra nisso tudo? Existe algum potencial inerente à Internet,
mediante o qual as pessoas podem exercer a negatividade e assim transformar o
existente, superando finalmente a sua condição de miséria e opressão? Em Às
portas da revolução (São Paulo: Boitempo, 2005), Zizek se pergunta: “Não
haveria também na World Wide Web um potencial explosivo para o próprio
capitalismo?” E a sua conclusão é de que sim, existe. Seu raciocínio, aqui,
está mais centrado na dimensão econômica do problema: a Internet, com sua
possibilidade de livre compartilhamento dos mais diversos materiais, promove
uma crise da propriedade privada. Nesse contexto, “o antagonismo-chave das
chamadas novas indústrias (digitais) é, portanto, como preservar a forma da
propriedade (privada), a única maneira pela qual a lógica do lucro pode
prevalecer.” (Zizek, 2005, 322). Promovendo a crise da propriedade privada, as
condições para o lucro ficam inviabilizadas, fato que faz com que sejam
abalados os próprios fundamentos do sistema capitalista. (Também não deixa de
estar contemplado, aqui, o elemento cultural do problema, visto que aquilo que
se compartilha via rede são os mais variados conteúdos relacionados com o
conhecimento, a arte, o lazer. As pessoas passam a dispor de materiais que não poderiam
ser adquiridos de outra forma, a não ser pelo intermédio da Internet. Isso
também lhes confere um ganho que repercute na dinâmica da sua personalidade e
nas suas ações).
Em artigo
de 29 de outubro de 2000, no jornal Folha de São Paulo, comentando sobre a
ameaça de que a influência da Internet sobre nossas vidas cotidianas torne
possível “um controle à maneira do ‘Big Brother’, diante do qual a velha
supervisão da polícia secreta comunista [seria] uma primitiva brincadeira de
criança”, Zizek insiste em que, para se evitar isso, não se deve repudiar
totalmente a tecnologia, como se ela fosse um mal em si. “Aqui, mais do que
nunca, deve-se insistir que a melhor reação [...] não é a retirada para alguma
ilha de privacidade, mas a socialização mais vigorosa do espaço cibernético
[grifo nosso]” (Zizek, Paranóias Virtuais, Folha de São Paulo, 29/10/2000).
Zizek está, agora, tratando da dimensão política que envolve o problema das Novas
Tecnologias: o poder de controlar a vida das pessoas. Sua
conclusão, então, é de que somente a ampla socialização da rede impediria o
controle sobre a vida das pessoas e permitiria que elas mesmas comandassem os
processos que regulam as suas vidas: economia, política, cultura, etc.
Avançando
ainda mais na reflexão, pode-se, agora, retornar ao ponto inicial da reflexão a
fim de se compreender a principal potencialidade inerente à Internet, com
vistas a contribuir para a solução do problema da emancipação social, política,
econômica e cultural: com base nas teorizações de Zizek, é possível afirmar que
as pessoas podem, por intermédio da rede, compartilhar sua experiência da
inadequação no mundo capitalista. Surge, com a rede, a
possibilidade dos indivíduos se aproximarem, se comunicarem, trocarem idéias e
elaborarem estratégias de questionamento prático sobre o ordenamento político e
jurídico que rege suas vidas na realidade “real”. Um exemplo disso foram as
manifestações estudantis na França, ao logo de boa parte do ano passado. Os manifestantes fizeram
um amplo uso da Internet para sua
comunicação e organização das atividades. Um outro exemplo de compartilhamento
da experiência de inadequação são as mídias alternativas, como o centro de
mídia independente – popularmente conhecido na rede, em língua portuguesa, como
CMI, cujo lema é “Odeia a mídia? Seja a mídia!” – onde as pessoas podem não só
receber informações que não passam na grande mídia, mas podem elas mesmas
relatar os fatos que vivenciam e que lhes causam perplexidade. E pode-se pensar
também que, ao mesmo tempo em que é realizada a crítica das condições
existentes, a rede abre inúmeras possibilidades para a consulta e tomada de
decisão sobre os assuntos políticos, econômicos e culturais concernentes à vida
da coletividade.
Contudo,
para que a Internet tenha atualizado esse potencial emancipatório, a condição
imprescindível é que as pessoas - o máximo de pessoas possível - possuam livre
acesso a ela. Trata-se, então, de liberar o acesso à Internet. Numa palavra,
socializar a rede. É por isso que, enfrentando a questão a partir de um ponto
de vista que visa a emancipação social e política, Zizek pode dizer: “Hoje fico
tentado a parafrasear o conhecido slogan de Lênin ‘socialismo = eletrificação +
poder dos sovietes’: ‘socialismo = livre acesso à Internet + poder dos
soviets’. (O segundo elemento é crucial, uma vez que especifica a única
organização social na qual a Internet é capaz de concretizar seu potencial
libertador; sem ele, teríamos uma nova versão de tosco determinismo
tecnológico)” (idem, 321-2).
Compreende-se,
então, que a Internet abre um amplo leque de possibilidades para que as pessoas
tomem as rédeas de suas próprias vidas. Para que governem elas mesmas as suas
vidas, e não deleguem a outrem esse poder. A Internet guarda um grande
potencial crítico, “explosivo”, político, na medida em que se converte em um
“lugar” de onde se pode criticar a propriedade privada, exercer o controle
sobre os mecanismos que regem a vida em sociedade, denunciar a ideologia,
compartilhar a experiência da inadequação e exercer o ato de negação do
ordenamento simbólico que nos é atribuído pelo Capital. Concordamos com a
proposta de Zizek que afirma que só um discurso negativo pode escapar da
ideologia e promover a emancipação, e que a Internet é veículo imprescindível para
esse objetivo.
BIBLIOGRAFIA
SAFATLE, Vladimir. A política do Real de Slavoj
Zizek. Posfácio de ZIZEK, Slavoj, Bem-vindo ao deserto do Real. Boitempo,
São Paulo, 2003. Coleção Estádio de Sítio.
ZIZEK,
Slavoj. Paranóias Virtuais. Folha de São Paulo, 29/10/2000.
ZIZEK, Slavoj, Bem-vindo ao deserto do Real.
Boitempo, São Paulo, 2003. Coleção Estádio de Sítio.
ZIZEK,
Slavoj. Às portas da revolução. Escritos de Lênin de 1917. São Paulo:
Boitempo, 2005