quinta-feira, 15 de setembro de 2011

DEMOCRACIA




Prever o futuro é tão arriscado que, podendo sempre errar, é preferível errar pelo otimismo. E há boas razões para ser otimista quanto à democracia. Nos últimos 20 anos, dobrou ou triplicou o número de pessoas que não vivem em ditadura. Talvez seja demais chamar Ucrânia ou El Salvador hoje de Estados democráticos, mas certamente há bem mais liberdade nesses países ou no Brasil, após a queda do comunismo e das ditaduras apoiadas por Washington, do que havia em 1980. A conjuntura mundial torna difícil o cenário usual, que era – ante o avanço de  reivindicações populares – a CIA (Central de Inteligência norte-americana) ou o Exército Vermelho acabarem com a festa. No Brasil, assim, se os militares se mantêm em paz nos quartéis, isso não decorre infelizmente da força da sociedade, mas de um contexto internacional em que um golpe de Estado deixaria os novos e ilegítimos mandatários enfraquecidos em qualquer negociação externa.

Esse quadro geral de apaziguamento abre espaço para a expansão da democracia. Não é casual que, mais uma campanha eleitoral avança, mais os resultados favoreçam as forças progressistas. O Brasil do primeiro turno vota à direita, o Brasil do segundo vota no centro e na esquerda. Em começo de outubro dos anos pares premiamos os nostálgicos da ditadura e, no fim do mês, consagramos as forças que se opuseram a ela, mesmo que hoje estejam divididas entre PT e PSDB.

Mas resta muito por fazer. Mais que tudo, é preciso desenvolver a idéia de que a democracia não é só um regime político, mas um regime de vida. Quer dizer que o mundo dos afetos deve ser democratizado. É preciso democratizar o amor, seja erótico, paternal ou filial, a amizade, o contato com o desconhecido: tudo o que na modernidade fez parte da vida privada. É preciso democratizar as relações de trabalho, hoje tuteladas pela propriedade privada. A democracia só vai se consolidar, o que pode tardar décadas, quando passar das instituições eleitorais para a vida cotidiana. É claro que isso significa mudar, e muito, o que significa democracia. Penso que cada vez mais ela terá a ver com o respeito ao outro.

Respeitar o outro implica reconhecer que ele não precisa ser como nós e aceitar sua diferença cultural, sexual, política, religiosa ou de valores, bem como admitir que tenha as mesmas chances que nós de encontrar seu caminho e de viver alimentado, vestido e saudável. É isso o que une a democracia enquanto poder do povo, comprometida com o sufrágio universal e com a justiça social, e enquanto conjunto de direitos humanos, empenhada pois em reconhecer a cada um seu rumo pessoal.

Ainda é difícil saber o que significa essa proposta. Mas o fato é que, apesar das circunstâncias atuais, a tendência de longo prazo parece ser a da democratização. É nela que devemos apostar.



Renato Janine Ribeiro, in Folha de S. Paulo, 31/12/00, Mais!, p. 7.

Nenhum comentário:

Postar um comentário