Prever o futuro é tão
arriscado que, podendo sempre errar, é preferível errar pelo otimismo. E há
boas razões para ser otimista quanto à democracia. Nos últimos 20 anos, dobrou
ou triplicou o número de pessoas que não vivem em ditadura. Talvez seja demais
chamar Ucrânia ou El Salvador hoje de Estados democráticos, mas certamente há
bem mais liberdade nesses países ou no Brasil, após a queda do comunismo e das
ditaduras apoiadas por Washington, do que havia em 1980. A conjuntura mundial
torna difícil o cenário usual, que era – ante o avanço de reivindicações populares – a CIA (Central de
Inteligência norte-americana) ou o Exército Vermelho acabarem com a festa. No
Brasil, assim, se os militares se mantêm em paz nos quartéis, isso não decorre
infelizmente da força da sociedade, mas de um contexto internacional em que um
golpe de Estado deixaria os novos e ilegítimos mandatários enfraquecidos em
qualquer negociação externa.
Esse quadro geral de
apaziguamento abre espaço para a expansão da democracia. Não é casual que, mais
uma campanha eleitoral avança, mais os resultados favoreçam as forças
progressistas. O Brasil do primeiro turno vota à direita, o Brasil do segundo
vota no centro e na esquerda. Em começo de outubro dos anos pares premiamos os
nostálgicos da ditadura e, no fim do mês, consagramos as forças que se opuseram
a ela, mesmo que hoje estejam divididas entre PT e PSDB.
Mas resta muito por fazer.
Mais que tudo, é preciso desenvolver a idéia de que a democracia não é só um
regime político, mas um regime de vida. Quer dizer que o mundo dos afetos deve
ser democratizado. É preciso democratizar o amor, seja erótico, paternal ou
filial, a amizade, o contato com o desconhecido: tudo o que na modernidade fez
parte da vida privada. É preciso democratizar as relações de trabalho, hoje
tuteladas pela propriedade privada. A democracia só vai se consolidar, o que
pode tardar décadas, quando passar das instituições eleitorais para a vida
cotidiana. É claro que isso significa mudar, e muito, o que significa
democracia. Penso que cada vez mais ela terá a ver com o respeito ao outro.
Respeitar o outro implica
reconhecer que ele não precisa ser como nós e aceitar sua diferença cultural,
sexual, política, religiosa ou de valores, bem como admitir que tenha as mesmas
chances que nós de encontrar seu caminho e de viver alimentado, vestido e
saudável. É isso o que une a democracia enquanto poder do povo, comprometida
com o sufrágio universal e com a justiça social, e enquanto conjunto de
direitos humanos, empenhada pois em reconhecer a cada um seu rumo pessoal.
Ainda é difícil saber o
que significa essa proposta. Mas o fato é que, apesar das circunstâncias
atuais, a tendência de longo prazo parece ser a da democratização. É nela que
devemos apostar.
Renato
Janine Ribeiro, in Folha de S. Paulo, 31/12/00, Mais!, p. 7.
Nenhum comentário:
Postar um comentário