Holgonsi
Soares Gonçalves Siqueira
* Publicado no Caderno MIX - Idéias - Jornal
"Diário de Santa Maria - Edição de 31/03 - 01/04/2007
"Livre do real, você pode fazer algo mais real
que o real: o hiper-real” (Jean
Baudrillard).
Nos debates sobre a
pós-modernidade, Baudrillard passou a ser reconhecido como o teórico do regime
do “simulacro”
através de sua obra intitulada “Simulacros e Simulação”, livro que se tornou
famoso também fora do ambiente acadêmico quando foi exibido no filme Matrix,
pois é dentro de uma edição deste livro que “Neo” guarda seus programas.
Colaborou ainda o fato do ator Keanu Reeves dizer em suas entrevistas sobre o
filme, que havia lido “Simulacros e Simulação”. Foi o que bastou para que o
nome de Baudrillard com sua teoria sobre o simulacro fosse rapidamente
associado ao filme. Ele não gostou desta associação, e na época ainda comentou
que tanto os responsáveis pelo filme, como Reeves, “se leram meu livro, não
entenderam nada”.
A interpretação
distorcida do pensamento de Baudrillard feita em “Matrix”, é bastante comum
entre os leitores universitários bem como entre muitos admiradores de seus
trabalhos. Na entrevista sobre este filme, Baudrillard foi objetivo: "existem filmes melhores que
este sobre o mesmo tema. "Truman Show", por exemplo, é mais sutil.
Não deixa o real de um lado e o virtual de outro, como "Matrix". Esse
é o problema." Essa é a
confusão.
O difícil conceito de simulacro tendo por base o “quarto
estágio (o terminal) do signo”, nunca esteve relacionado com uma oposição
entre simulação e realidade, entre o real e o signo, em outras palavras, nunca
quis dizer irrealidade. Os simulacros são experiências, formas, códigos,
digitalidades e objetos sem referência que se apresentam mais reais do que a própria
realidade, ou seja, são “hiper-reais”. Como ele escreveu: “A
simulação já não é a simulação de um território, de um ser referencial, de uma
substância. É a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade:
hiper-real”. Assim, Baudrillard entendia nossa condição como a de uma ordem social na
qual os simulacros e os sinais estão, de forma crescente,
constituindo o mundo contemporâneo, de tal forma que qualquer distinção entre
“real” e “irreal” torna-se impossível.
Em recente entrevista
por ocasião da morte de Baudrillard, o importante pensador da pós-modernidade e
crítico da globalização, Zygmunt
Bauman, destacou a importância do conceito de simulacro
entre tantos outros trabalhados por Baudrillard. Concordo com ele. Na verdade é
um conceito central que configura-se como uma axiomática geral coordenadora do
pensamento baudrillardiano sobre a sociedade-cultura contemporânea. Isto se evidencia no
momento em que, para Baudrillard, a reprodução do real acontece em qualquer
esfera do sistema. Tudo se tornou um simulacro: o mundo do trabalho, o capital,
a etnologia, o teatro, a arte, a pedagogia, a psiquiatria, a política, o
sexo, etc.. Como ele concluiu em “simulacros e simulações”: “tudo se
metamorfoseia no seu termo inverso para sobreviver na sua forma expurgada.Todos
os poderes, todas as instituições falam de si próprios pela negativa, para
tentar, por simulação de morte, escapar à sua agonia real”.
Portanto, vivemos em uma
nova fase da história, em um novo mundo
organizado em torno de simulacros e simulações, no qual somos alcançados,
ininterruptamente pelo jogo de simulacros, o que transforma radicalmente nossas
experiências de vida, destrói os sentidos e as significações, e esvazia
completamente o conceito de realidade. Sob este aspecto, Baudrillard destaca
como força constitutiva por excelência do jogo de simulacros, os meios de
comunicação. Ele enfatiza que “temos que pensar nos medias como se
fossem, na órbita externa, uma espécie de código genético que comanda a mutação
do real em hiper-real”.
Em seu livro “A
transparência do mal”, reafirmou que as novas
tecnologias de informação, comunicação e entretenimento,
confrontam o indivíduo cotidianamente com a hiper-realidade, o que acaba
gerando mais angústias, dúvidas e medos.
Neste mundo hiper-real das profundas revoluções
tecnológicas, Baudrillard nos deixou complexas interrogações,
como por exemplo: “sou um homem ou uma máquina?”; “sou um homem ou um clone
virtual?”; “como podemos ser humanos?”. Suas respostas se encaminham no
sentido da constituição da imensa rede de
simulacros.
Em sua perspectiva, o
ciberespaçotempo constitui-se como um terreno cibernético que além de minar a
distância entre o metafórico e o real, subordina totalmente os indivíduos. Sob
seu ponto de vista, não estamos preparados para o grau de desenvolvimento a que
chegou o sistema tecnocientífico, e ao buscarmos mais informação e comunicação
acabamos agravando nossa relação com a incerteza. Foi categórico: “a revolução contemporânea é a da incerteza”.
Nas análises sobre os
meios de comunicação, Baudrillard sempre deu destaque especial à televisão, a
qual, segundo ele, através da produção exagerada de imagens, signos e
mensagens, originou o “mundo simulacional” (ou, uma sucessão infinita de
simulações que neutralizam umas às outras), que está intimamente relacionado
com os significantes desconexos e com uma realidade totalmente estetizada no
qual há uma perda da noção de realidade concreta. Neste mundo, as técnicas para
produzir ilusões são sofisticadas (exemplo, a realidade virtual), através delas
os indivíduos mudam de código muito rapidamente, anulando toda e qualquer
relação com o passado.
O poder de dominação, de
fascínio, de hipnotização da televisão sobre os indivíduos, é expresso em seu
dizer irônico que “a imagem do homem sentado, contemplando num dia de
greve sua tela de televisão vazia, constituirá no futuro uma das mais belas
imagens da antropologia de nosso século”. Entendia os meios de
comunicação de massa como veículos do fascínio bruto do ato terrorista, ou
seja, na medida em que caminham para o fascínio são eles
próprios terroristas, são manipuladores em todos os sentidos (uma vez que
carregam consigo o sentido e o contra-sentido). Afirmou sem impossível
encontrar um bom uso dos media, em suas palavras: “ele não existe”.
A multiplicação da
quantidade de sinais e espetáculos pelos meios de comunicação, produz uma
proliferação do que ele chamou de “sinal-valor” (uma “economia política do
signo” – expressão que nomeia outra importante obra de Baudrillard), ou seja, a
marca, o prestígio, o luxo e a sensação de poder tornam-se uma parte
crescentemente importante do artigo de consumo e não somente seu “valor de uso”
ou “de troca” (como na teoria Marxista). Chegamos assim ao que considero como o
enfoque principal do pensamento de Baudrillard. A inter-relação de seus
conceitos, reflexões e obras em torno, não somente da descrição (como querem
muitos), mas também de uma crítica sem concessões ao processo de consumo
contemporâneo.
Na obra “A sociedade de
consumo”, destaca que a característica de nossa sociedade-cultura é, antes de
tudo, a de ser uma sociedade-cultura
de consumo (idéia retomada em todos os seus escritos), que reduz
o indivíduo à condição de consumidor como conseqüência da automatização do
sistema de produção. Defendia que era impossível negar que nos dias atuais
existe uma dinâmica de consumo diferente, que entre outras coisas pode ser
representada através de seu slogan de que “já não consumimos coisas, mas
somente signos”. Na “época do signo”, produz-se, simultaneamente, a
mercadoria como signo e o signo como mercadoria.
Para ele, a
transformação da mercadoria em signo foi o destino do capitalismo no século XX,
e o objetivo desta sociedade-cultura é apresentar, cada vez mais, um grande
número de signos novos, imagens e experiências para que o indivíduo deseje e
consuma. Nesta direção, condenou o processo de estetização de todas as coisas
que ocorre na atual fase do capitalismo, pois como dizia, “até o mais
marginal, o mais banal, o mais obscuro estetiza-se”. Deixou transparecer
que entendia a publicidade como a arte oficial do capitalismo, uma vez que
todas as formas atuais de atividade voltam-se e esgotam-se nela. Por isto a
forma publicitária impôs-se e desenvolveu-se à custa de todas as outras
linguagens.
Baudrillard também
salientou que os códigos e modelos de marketing e lógica semelhantes geraram
uma produção infinita e instável de estilos de vida, dissolvendo-se assim o
objeto antigamente conhecido como sociedade; as estruturas sociais de classe,
gênero e etnia são reduzidas a imagens do social e vividas através do meio
imagístico do estilo de vida. A estetização que fascina, manipula desejos e
gostos e impulsiona na direção do consumo, apresenta a falsa idéia de que nas
práticas consumistas está a resolução dos problemas da vida, bem como a
transformação da insignificância do mundo. Observou que os “meios realizadores”
estão sempre em coisas diferentes às expectativas geradas, e, ainda segundo
ele, pode ser até que atendam satisfações mais superficiais, mas jamais
aspectos profundos da vida humana como geralmente propõem.
Sob este aspecto
Baudrillard radicalizou ao desenvolver a idéia que os indivíduos, imersos nas
práticas e relações de consumo, não combatem nem condenam, mas exploram ao
máximo as tendências figuradas, as sensações imediatas, as experiências
ardentes e isoladas, as intensidades da sociedade-cultura de consumo e, sem
procurar significados coerentes, obtém prazer estético nestas intensidades
superficiais.
Tendo por base as relações político-econômicas e socioculturais contemporâneas,
constato e concordo com as idéias de Baudrillard sobre uma sociedade-cultura de
simulacros e simulações; sobre o privilégio dado pelo capitalismo pós-moderno à
produção de signos e imagens ao invés das próprias mercadorias; sobre a
desestabilização da noção original das coisas e das ilusões culturais
empreendidas pela publicidade, pela mídia e pelas técnicas de exposição dos
produtos; também concordo que o consumismo está moldando as relações entre os
indivíduos na pós-modernidade.
O grande problema para
mim com o “teórico do simulacro” é que, seus argumentos para tornar
preponderante a sua hipótese do objeto-signo, giram em torno da dominação total
e negatividades das novas tecnologias e da televisão, e os indivíduos são
reduzidos à condição de consumidores passivos. A partir destas idéias, Baudrillard
faz uma leitura do social em “À sombra das maiorias silenciosas”, que
pode ser entendida como pessimista e determinista.
Ao caracterizar o social
como um amontoado confuso, diz que este social não é nada, apenas “massas”,
para então concluir que as “as massas absorvem toda a eletricidade do social
e do político e as neutralizam, sem retorno. Não são boas condutoras do político,
nem boas condutoras do social, nem boas condutoras no sentido geral...Elas são
a inércia, a força da inércia, a força do neutro”. Enfim, não passam de “buracos
negros - uma de suas metáforas preferidas para caracterizar as “massas” – em
que o social se precipita”. Sobre esta leitura, Fredric Jameson disse que a
compreensão de Baudrillard com relação às seduções do mercado era “dramática
e paranóico-crítica”.
Faltou a este grande
pensador, admitir e trabalhar as possibilidades de
uma semiótica crítica que desvela as dimensões ocultas da hiper-realidade
permitindo uma desconstrução do regime dos signos.
Com suas leituras e
re-leituras do capitalismo de consumo, Baudrillard passou a ocupar um lugar de
destaque entre os teóricos do contemporâneo. Sua análise sobre a
sociedade-cultura atual, ancorada na relação simulacro-estetização da
realidade-consumismo, influenciou os trabalhos de marxistas
pós-modernos-críticos como Fredric Jameson e David Harvey, não obstante as
diferenças teóricas e políticas. Porém não se engane o leitor, Baudrillard não
era pós-moderno, muito menos “um dos pais da pós-modernidade” como muitos
diziam e como foi difundido pelos recentemente pelos meios de comunicação.
Repudiava a pós-modernidade como algo vazio, totalmente sem sentido, pois para
ele era um campo aberto para qualquer coisa.
Paradoxalmente, suas
idéias, conceitos e teorias (construídas desde os anos 60, e expressas em cerca
de 50 obras), juntamente com as de Jean-François Lyotard e Fredric Jameson,
tornaram-se indispensáveis nas análises, debates e entendimentos sobre a teoria
e condição pós-modernas. Na verdade era conhecido como um pensador que
rejeitava consensos e rótulos, não aceitando também que classificassem sua
crítica de pessimista.
Seu estilo intelectual
foi marcado pela ironia, e defendia que o emprego da ironia, do inverso, da
falha, da reversibilidade, era a única verdadeira função intelectual (estilo
pós-moderno?). Não agradou os conservadores colegas, os quais procuravam-lhe
desqualificar com os mesmos adjetivos com que ele rejeitava a pós-modernidade.
O certo é que seu arcabouço teórico desconstruiu velhas categorias, velhos
conceitos e suas distinções (afirmando sobre a impossibilidade de sustentação
dos mesmos), e com seu pensamento interdisciplinar ignorou fronteiras e
hierarquias que ainda insistem em se manter no contexto universitário e
educacional.
Baudrillard morreu no
dia 06 deste mês. Também era fotógrafo, e justificava sua forma de escrever
fragmentada como sendo pequenos retratos do mundo. Para quem não consegue “ler”
suas fotografias, ou não entende seus “enquadramentos”, ou assim como eu, não
curte suas “cores” demasiadamente fortes, atente para o seu princípio: “já
que o mundo se encaminha para um delirante estado de coisas, devemos nos
encaminhar para um ponto de vista delirante”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário