Após analisar as
definições de ideologia e de cultura, vamos iniciar um novo plano de reflexão,
em que entram direta ou indiretamente em debate tanto o conceito de cultura
como o de ideologia. Estudaremos, agora, uma questão que continua em discussão
nas ciências sociais, que é a existência de duas formas específicas de cultura
em nossa sociedade: a cultura popular e a cultura erudita. O que seria erudito?
O que seria popular? O que distinguiria o popular do erudito? A que grupo ou
classe social poderíamos associar cada um desses conceitos? Haveria algum
critério de valor a separar esses conceitos, isto é, seria possível ou correto
compará-los e julgá-los?
O “popular” relaciona-se
ao povo; o “erudito”, à elite (ou classe dominante, se preferirmos). Essa
seria, sem dúvida, a associação mais imediata a ser feita com esses conceitos.
Mas para fazer ou não essa associação é preciso analisar os porquês daquela
oposição inicial. Por que distinguir dois tipos de cultura e dar a eles valores
diferenciados?
A questão da existência de
uma cultura popular versus uma cultura erudita implica modos diferenciados de
ser, pensar e agir, associados aos detentores de uma ou de outra cultura. Falar
em cultura popular significa falar, simultaneamente, em religião, em arte, em
ciência populares – sempre em oposição a um similar erudito, que pode ser
traduzido em dominante, dada a dimensão dicotômica (dominante versus dominado)
que caracteriza a sociedade capitalista.
Mas como defini-las e
distingui-las? A pergunta permanece. Há autores, como veremos adiante, que
dizem já não ser possível pensar em cultura puramente popular ou puramente
erudita numa sociedade como a nossa, integrada e padronizada pela cultura de
massa, ou indústria cultural. Outros autores discordam dessa postura,
diferenciando não duas, mas três culturas, em constante inter-relação: a
cultura popular, a cultura erudita e a indústria cultural, esta última muitas
vezes atuando como uma espécie de ponte entre as duas primeiras. Mas, por
enquanto, tentemos nos fixar especificamente na discussão ainda não resolvida,
como já foi dito, referente à compreensão do erudito e do popular na
contraditória sociedade capitalista que vivemos.
Cultura erudita e cultura
popular: o que são e quem as produz?
Definir cultura erudita
aparentemente não ocasiona grandes problemas.Ao pensarmos em cultura erudita,
quase automaticamente a associamos ao plano da escrita e da leitura, do saber
universitário, dos debates, da teoria e do pensamento científico. Já definir
cultura popular não é assim tão simples. Na verdade, definir cultura popular
representa uma polêmica que cientistas sociais, historiadores e pensadores da
cultura em geral mantêm até hoje. E, se essa polêmica ainda existe, é possível
concluir que há várias definições de “popular”. Ao pensarmos em cultura
erudita, imediatamente concluímos que seus produtores fazem parte de uma elite
política, econômica e cultural que pode ter acesso ao saber associado à
escrita, aos livros, ao estudo. A resposta já não é tão imediata quando perguntamos
quem são os produtores da cultura popular. Mas afirmar que os produtores da
cultura erudita fazem parte de uma elite não significa dizer que essa cultura
seja homogênea. Para os antropólogos Gilberto Velho e Eduardo Viveiros de
Castro, é impossível definir cultura erudita, porque não podem ser
homogeneizados os elementos culturais produzidos por intelectuais, fazendeiros,
empresários, burocratas, etc. Porém, é igualmente impossível definir cultura
popular, dadas as produções culturais diferenciadas de camponeses, operários,
classes médias baixas, etc.
De qualquer forma, não
podemos perder de vista que o espaço reservado na sociedade para cada uma das
duas culturas é bastante diferenciado. Enquanto a cultura erudita é transmitida
pela escola e confirmada pelas instituições (governo, religião, economia),
existe uma outra cultura que não se encontra nos esquemas oficiais. Mas onde
está essa cultura? Para descobrir o seu lugar, pensemos nas definições que os
estudiosos têm dado ao conceito de cultura popular. O historiador inglês Peter
Burke define a cultura popular como uma cultura não oficial, do povo comum.
Nesse sentido, o autor segue o pensamento de Antonio Gramsci, para quem a
cultura popular é a cultura do povo, e os seus produtores são as classes
subalternas. Para Gramsci, a cultura popular, por ser ligada à tradição, é
conservadora. No entanto, por ser capaz de incorporar e reconstruir novos
elementos culturais, é também inovadora. Segundo o antropólogo brasileiro
Carlos Brandão, quem faz cultura popular ou folclore (voltaremos mais tarde a
esse conceito) nem sequer imagina que o que faz tem um outro nome, tem uma ou
outra definição, causa ou não causa polêmicas entre intelectuais. As populações
que os estudiosos aproximaram do conceito e da prática da cultura popular (ou
do folclore) vivem, têm suas atividades cotidianas, divertem-se, têm suas
maneiras de ver o mundo e entender a vida, cantam, dançam, sentem e trabalham.
Essas coisas seriam cultura popular? Essas coisas seriam folclore, ou, como
Brandão ouviu em suas andanças pelo interior do Brasil, “focrore”?
Além disso, talvez seja
importante refletir sobre mais uma última questão: que pessoas se interessam
por essas definições? E aqui a resposta é rápida: mais do que aos próprios
produtores da chamada cultura popular, essas questões interessam aos
estudiosos, que, por sinal, numa associação mais imediata, seriam associados à
elite e à esfera da cultura erudita, já que lêem, escrevem e debatem.
Cultura popular e cultura
erudita: conflito e incorporação
A questão presente em
todos esses movimentos culturais, dos mais antigos aos mais recentes, refere-se
à real definição do popular e do erudito. Se o popular fosse considerado
exclusivamente como tradição e, portanto, como algo a ser conservado e protegido,
introduzir guitarras elétricas no que se convencionou chamar de “música popular
brasileira” seria inaceitável (e, de fato, isso causou escândalo na década de
60, quando o Tropicalismo e mesmo a Jovem Guarda de Roberto Carlos surgiram – e
com eles, as guitarras, os cabelos compridos, as calças apertadas) Se,
por outro lado, o erudito significasse somente aquilo a que se convencionou
chamar de “belas-artes”, música e teatro clássicos, não se poderia pensar na
transcrição para a linguagem plástica, escrita e musical de imagens, poemas e
canções do folclore (e estes, por sua vez, só seriam folclore, ou cultura
popular, se fossem passados oralmente, de pai para filho, sem alterações, ao
longo dos séculos).
Como sabemos, nada disso
acontece. Numa sociedade complexa como esta em que vivemos, não é possível
ignorar as inter-relações estabelecidas entre a cultura erudita e a cultura
popular e sua importância no próprio estabelecimento e manutenção da sociedade.
A cultura erudita procura compreender e incorporar elementos da cultura popular
(segundo muitos autores até para melhor dominá-la). Isso não significa, porém,
que a cultura popular não resista a essa incorporação e não incorpore e
reelabore, ela mesma, elementos tradicionalmente associados à cultura erudita.
Para compreender todas
essas inter-relações é preciso pensar que todos os elementos enumerados no
início do item “Cultura popular e cultura erudita no Brasil” – festas,
literatura, culinária, religião, etc. – trazem em si a organização político-econômico-cultural
do país, suas regras, suas contradições. Apesar de estarem associados
imediatamente a uma certa visão do povo e da cultura popular brasileira, da
elite e da cultura erudita, esses elementos não são necessariamente harmoniosos
nem estão parados no tempo. Ao contrário, vão se transformando, ao longo da
história e das relações sociais, num movimento dinâmico e incessante que é o
que caracteriza o ser humano e a vida em sociedade.
Para ilustrar, poderíamos
utilizar o exemplo da feijoada. Com o passar do tempo, ela deixou de ser comida
de escravos e passou a ser um símbolo de nacionalidade, sendo servida não só
nos restaurantes simples como nos requintados.
Para compreender a cultura
e seus significados, é necessário acompanhar as etapas de transformação de seus
elementos, como no exemplo da feijoada, e tentar descobrir as suas causas.
Existe uma tendência a se considerar tudo aquilo que se relaciona com a cultura
popular como algo antigo, ultrapassado, que precisa acabar e dar lugar
ao novo, ao moderno (em
geral associado ao erudito). Curiosamente, muito do que se convencionou chamar
de velho e ultrapassado é associado também à identidade nacional, isto é,
àqueles elementos que fazem com que uma determinada população se identifique
como um grupo de pessoas possuidor dos mesmos interesses, objetivos e visão de
mundo; em resumo, que se identifique como nação. Esses elementos, se por um
lado reforçam a identidade, por outro acabam estimulando a padronização de
gostos, interesses e necessidades, fazendo com que as pessoas se esqueçam de
que vivem em uma sociedade por definição contraditória, já que dividida em
classes.
A indústria cultural vai
ser um elemento-chave para pensarmos nessas questões.
Nelson Dácio
Tomazi, Iniciação à Sociologia, São Paulo, Atual, 1993, p. 179-182,
190-191
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